Escrevi este conto quando tinha 17 anos, depois foi publicado no livro "Feliz Natal, Gondomar!", que 99,9% dos gondomarenses nunca ouviu falar! 😁
Deixo-vos aqui a transcrição do conto, para quem tiver paciência...
Trim… trim… trim… Acordo assustada com o despertador, levanto-me, ainda
com uma certa dificuldade provocada pelo sono e em passos lentos e
pesados dirijo-me para a janela. Observo um dia cinzento, frio, chuvoso.
Contudo, apesar de ser ainda muito cedo, a rua está repleta de pessoas
muito atarefadas, carregadas de sacos e embrulhos nas mãos e, ao
contrário dos outros dias, não parecem estar incomodadas com o frio ou
com a chuva. Todas elas transportam um agradável e leve sorriso nos
lábios; é véspera de Natal. Foi então que abri a janela e ao sabor de um
vento fresco, húmido e suave, comecei uma curta viajem no tempo
recordando o Natal da minha infância.
Lembro-me da enorme árvore de
Natal enfeitada com anjos, estrelas, luzes e bolas, do bebé que só era
colocado no presépio no dia vinte e cinco, da lareira sempre acesa
proporcionando um agradável calor, contrastando com o frio que vinha das
ruas iluminadas, do cheirinho a pão-de-ló e a bolo-rei que saía das
pastelarias e que enchia a barriga de quem passava perto delas, hummm…
lembro-me de como acordava alegre e ansiosa por ajudar a minha avó a
preparar as rabanadas, os bolinhos de abóbora, as filhoses, aletria, o
leite-creme e de como me lambozava com uma deliciosa mousse de
chocolate. Iam-se procurar as maiores panelas e travessas, a mesa era
posta com a loiça de porcelana, os copos de cristal e decorada com a
toalha mais bonita e um grande arranjo de azevinho e velas feito pela
minha mãe. Depois, enquanto o dia ia morrendo e a noite nascendo,
começavam a chegar as pessoas, uma a uma, com uma rapidez impacientemente lenta, trazendo
com elas alguns doces, espumantes, vinho do Porto e presentes.
Como
tudo me parecia perfeito! Todos pareciam estar felizes, sentavam-se em
redor da grande mesa da sala de jantar e o humilde bacalhau
transformava-se milagrosamente no melhor jantar do mundo! No ar,
sobrevoava um agradável e inconfundível cheiro a frutos secos. Ainda
hoje, continuo a sentir esse aprazível aroma.
A noite demorava uma
eternidade a passar. Recordo-me que eu, o meu irmão e os meus primos,
esperávamos alegremente pela meia-noite, altura em que supostamente o
Menino Jesus, com a preciosa ajuda do Pai Natal, traria presentes para
aqueles que menos travessuras tinham feito ao longo do ano. Nunca
acreditei no Pai Natal e tinha consciência que o Menino há muito tinha
crescido. Todavia, fingia acreditar. Talvez para aproveitar aquele
momento mágico em toda a sua plenitude. Todos os anos acontecia
religiosamente a mesma coisa: o grande relógio do corredor anunciava
pomposamente as doze badaladas e, simultaneamente, alguém tocava a
campainha da porta. Enquanto corríamos euforicamente para a porta da
rua, alguém punha os presentes junto da árvore. Quando fecho os olhos
ainda consigo ouvir os risos ao rasgar energicamente os papéis coloridos
dos presentes que, como por encanto, tinham aparecido ali…
Desperto do passado e abro os olhos para o presente.
Continuo a olhar pela janela e reparo que, embora a paisagem seja a
mesma de há doze anos, hoje consigo ver coisas que nunca tinha visto
antes. Vejo um cenário feliz, com figurantes felizes e protagonistas
tristes. Vejo um velho deitado num banco de jardim, vejo um arrumador de
carros ao fundo da rua e vejo uma criança suja a tentar
vender pensos rápidos a quem passa. Durante o ano são meros figurantes
que vivem à margem de uma sociedade egoísta. Porém, em Dezembro, toda a
gente fica solidária e os quer ajudar, apesar de o velho continuar a
dormir ao relento num desconfortável, mísero e desumano banco de
jardim, do arrumador de carros continuar a tentar arranjar uns trocos
para mais uma dose de heroína e da criança suja continuar a vender penso
rápidos para não apanhar uma tareia de uns pais alcoólicos, quando
chegar a "casa".
Deixei de acreditar no Natal, porque não passa de
uma ilusão. A festa do nascimento de Cristo foi substituída pela festa
da troca de presentes. Será que os pais ainda contam aos filhos a
história de José, Maria e do Anjo que anunciou que esta daria à luz o
filho de Deus? Será que sabem que o Menino nasceu numa cidade chamada
Belém e que uma linda estrela guiou três reis até Ele? Provavelmente
sabem, mas será que isso tem algum significado para eles? É então que
neste conflito interior, decido fazer algo para dar algum significado ao
meu Natal. Saio de casa apressadamente, sem um plano definido. Na rua
há uma harmoniosa mistura de sons, cores, cheiros, tão característicos
desta época.
Vou caminhando... caminhando... caminhando... até que
encontro o velho do banco do jardim. Aproximo-me e digo-lhe "Bom dia!".
Não me responde. Talvez por estar habituado a ser ignorado não sente a
minha presença. Pergunto-lhe porque dorme naquele banco de jardim.
Encolhe os ombros e não me responde. Olho-o nos olhos. Como são lindos!
Olhos cor de mar... uma cor indefinida, assim como a sua idade. Quantas
histórias, aventuras e desventuras deverão esconder as suas rugas?
Pede-me para fechar os olhos e que imagine uma pequena aldeia escura, do
interior, com casas de granito e ruas estreitas de terra batida. Lá
tinha nascido um menino, numa família de origem humilde. Viviam, como
quase todas as famílias daquela época, com grandes dificuldades e cedo o
menino teve que abandonar a escola para ajudar
os pais e os seus irmãos. No entanto, apesar das grandes dificuldades,
afirma ter saudades desses tempos, principalmente da maneira como viviam
o Natal, recordações que o tempo não conseguiu apagar-lhe da memória.
Apesar de ser oriundo de uma família modesta, neste dia nunca faltava
um bom bacalhau que o merceeiro ia buscar com um mês de antecedência à
cidade, uma variedade de hortaliças, que cultivavam no pequenos quintal e
as rabanadas com bastante açúcar e canela. Ainda não havia o hábito de
se fazer a árvore de Natal. Em vez dela, existia um pequeno presépio de
figuras de barro já gastas pelo tempo. Quando soavam as doze badaladas
no sino da igreja, todos os aldeões saíam de suas casas e iam à missa do
galo, reunindo-se no fim no largo da igreja a cantar, a beber vinho
fino e a comer doces. Ao raiar do dia, quando o menino e os seus irmão
acordavam, encontravam dentro dos seus socos dois tostões e um
chocolatinho pequenino embrulhado num reluzente papel de prata. "Pode
parecer pouco", diz o velho, " Mas para o mim era o melhor do mundo!"
Ficava todo o ano à espera do Natal... Certo dia, o menino cresceu,
abandonou a pequena aldeia escura e foi para o litoral trabalhar numas
minas de carvão. A partir daí nunca mais sentiu o Natal.
Fiquei comovida com a história do velho do banco do jardim. Olhei-o
com admiração. A escola da vida fez dele um sábio e as suas rugas não
são as marcas do tempo, mas sim do conhecimento. Pergunto-lhe pela
família, diz-me que depois da morte da esposa, sentiu-se desamparado e
solitário e saiu de casa sem avisar o filho. Nunca mais regressara.
Vagueava, perdido pelas ruas, esperando que o frio abraço da morte o
levasse para junto da mulher que amava.
Uma lágrima solitária
percorre-lhe o rosto. Digo-lhe que se ainda não sentiu o abraço da morte
é porque ainda tem alguém que precisa muito dele. Depois de muito
insistir, consigo convencê-lo, finalmente, a procurar o filho.
Caminhamos com calma, pelas ruas agitadas, em direcção à casa do filho
do velho do banco de jardim. Chegamos ao nosso destino. Toco à campainha
e atende-me um homem alto, magro, moreno, com olhos cor de mar. Concluí
que fosse o filho do velho que, ao ver o pai, ficou completamente
paralisado e, num daqueles momentos inexplicáveis, dão um forte abraço.
Não dizem nada. Palavras para quê se os gestos falam por si. Choram e
riem como duas crianças. Minutos depois, chegam os netos e a nora,
juntando-se ao abraço. Vou-me embora, retendo na memória uma das cenas
mais lindas que jamais presenciei. Depois do vi, começo a acreditar na
magia do Natal.
Faço o caminho de volta para casa com o espírito
leve. Lembro-me então do arrumador de carros e das criança suja. Procuro
por eles, mas não os encontro em lugar algum. No entanto, não fico
triste, porque sinto que alguém os ajudou.
Volto para casa.
Infelizmente, já não posso ir ajudar a minha avó a preparar os doces,
mas vou prepará-los com a mesma emoção e alegria de quando era criança,
pois voltei a acreditar no Natal e ele faz-me acreditar que todos os
sonhos são possíveis. Basta acreditar neles.
Anoiteceu. A alegria
espalha-se por toda a casa. Vou à janela, o céu está repleto de estrelas
e, subitamente, uma destaca-se das outras, a sua beleza e o seu brilho
são tão grandes que ofusca todas as outras. Olho para a estrela e vejo
um mundo sem guerra, sem fome, sem injustiças e repleto de harmonia e
felicidade... sinto aquela estrela a invadir-me a alma de paz e vejo que
faz o mesmo com o mundo.