quinta-feira, 20 de julho de 2017

Isto de ser um número não é ser professor

Queridos David e Pedro;
Com o aproximar de um novo ano letivo, volta-se a falar do concurso de professores, da colocação (ou não) de professores e das queixas dos professores. Se não fosse professora acredito que também pensaria "lá estão estes outra vez a reclamar". Por vezes, de tanto falarmos de uma coisa ela torna-se banal. O que é que interessa se 1000 ou 10 000 ficam sem colocação? São números apenas. Eu também sou um número e esse número não diz absolutamente nada sobre mim, nem como pessoa, nem como profissional, é apenas um mero indicador de tempo de serviço misturado com uma classificação académica. 
Hoje em dia, em qualquer situação, as pessoas são números, e logo eu que sou alérgica à matemática também sou um número. O que muitas vezes nos esquecemos é que por detrás de um número existe uma pessoa, que tem família, amigos, cão, gato e piriquito talvez. No ano passado vi uma reportagem sobre professores deslocados. Sim, também já o fui, mas naquela altura da minha vida gostei, gostei de viver em outras cidades, conhecer novas realidades, novas pessoas. Quando se está a começar faz todo o sentido, sair do conforto da casa dos pais. E foi muito bom. A diferença é que nessa reportagem os intervenientes não tinham vinte e tal anos, tinham todos mais de trinta, quarenta talvez. Quase todas as histórias eram tocadas pela solidão, porque recomeçar todos os anos é difícil. Imaginem se tivessem de mudar de local de trabalho ano após ano, se tivessem de mudar de casa todos os anos, de cidade... uma colega nessa reportagem disse que a sua vida estava guardada em caixas e que a sua companhia era o cão. Fiquei triste por ela, e por todos os outros na mesma situação. E feliz por mim, por ter tomado a decisão certa, embora por vezes possa não parecer... "ah! se não tivesse recusado aquela renovação de contrato a 300 e tal kms de casa podia ter uma hipótese de vincular"... mas teria perdido vínculos mais importantes, momentos únicos que jamais se repetirão. As vossas primeiras palavras, os vossos primeiros passos, os vossos sorrisos, os vossos abraços... a vida não é para estar fechada dentro de caixas, nem para estar a 300 e tal kms (ou mais), nem para ser adiada. Ouvi tantas vezes: "quando tiver estabilidade faço isto, faço aquilo..." e se já for tarde demais? Somos milhares de professores, somos milhares de números, mas cada número representa sonhos adiados, alguns pais de fim de semana, projetos esquecidos, vidas dentro de caixas, horas de solidão. Vi colegas que todas as segundas deixavam os filhos para trás, outros iam, mas ficavam longe do pai, casais separados pela distância. 
Isto de ser um número não é ser professor, não é ser Humano. Um número não cria laços com as pessoas, com os alunos, com os colegas, com os funcionários. A escola não é (deveria ser) a nossa segunda casa? Em casa existem regras, mas também existem afetos e preocupações. Como em qualquer casa as pessoas que lá habitam têm personalidades diferentes, umas são mais perfeitas que outras, porque somos pessoas e não somos números. Já vos disse que a minha memória é alérgica a números? Por isso, o que ela retém destes anos de trabalho são as pequenas coisas que vão muito para além dos números e das taxas de (in)sucesso. Nessas taxas não aparece o T., aluno de um curso profissional, que não ligava a miníma às aulas de Português, mas que um dia quando abordei o 25 de abril na aula foi o mais interessado e participativo (sejamos honestos se eu tivesse trabalhado a noite inteira para ajudar a minha mãe a criar os meus irmãos também não queria saber do Português para nada). Nesses números também não aparece o R. que disse violentamente que me cortava o pescoço (e naquele momento desejei que o teletransporte fosse uma realidade), mas que era o primeiro a ajudar os colegas de cadeiras de rodas nos dias de chuva. O números não falam da A. e do seu sorriso contagiante que afinal escondia uma história obscura de abusos; nem da F. que passava os dias na paragem do autocarro em frente à escola, ou do J. que após a separação dos pais tinha sido "depositado" em casa dos avós, porque os progenitores (atenção que não escrevi "pais") tinham formado novas famílias, com novos filhos... como será que está o J. agora? Ele que no meio disto tudo foi o menos culpado e o mais prejudicado. E o M.? Que após alguns recados na caderneta devido a mau comportamento, recebo uma mensagem do pai que dizia para não me preocupar porque o futuro do filho já estava traçado: a prisão!  Os números não sabem que há miúdos que só comem na escola, sim já todos ouvimos isto, mas passa sempre ao lado porque nunca vimos. Até o dia em que vamos parar a uma escola (quase) no meio do nada... e vemos a vontade com que um rapaz come um prato de arroz e depois o segundo e o terceiro... 
E também há os que só têm a oportunidade de tomar banho na escola, e os que não sabem as regras básicas de higiene ou como se comportar em sociedade porque nunca lhes foi ensinado. Gostava de ver um número a ensinar isso, em 45 minutos semanais, a um  rapaz que passava o tempo todo da aula com a cabeça enfiada dentro da camisola... ou aos outros dois miúdos que preferiam contar-me como assaltavam carros, roubavam motas e compravam droga. Os números não apoiam as mães adolescentes, nem identificam as depressões, os desaparecimentos, as auto mutilações, o abandono, nem confortam quando um familiar próximo está doente, não dão esperança.
E porque um número é e será sempre apenas um algarismo, nunca saberá o que é cumplicidade. Um número nunca interromperia uma aula para falar sobre a morte e a vida porque nunca entenderia que naquele momento era mais importante para a turma falar sobre o colega que morrera do que cumprir o programa. Se eu fosse um número a minha colega Liliana não teria andado mais 10km durante um mês para me dar boleia, nem a Elisabete me teria apoiado quando me aventurei numa nova disciplina, nem as colegas da ES Mem Martins teriam trocado aulas comigo para que eu "fosse de fim de semana" mais cedo. Não teria partilhado bons momentos com os colegas da ES D. Dinis e do AE de Aljezur, momentos que fizeram com que não sentisse a tal solidão de chegar a um sítio e não conhecer absolutamente ninguém. A D. Rosa nunca me teria embrulhado as sandes em papel de alumínio para ser mais fácil de transportar no comboio (a viagem de Lisboa até ao Porto ainda era grande), a D. Antónia nunca saberia que gosto de tomar pela manhã meia de leite e pão com fiambre, a D. Ana nunca me teria guardado a pen vermelha que deixo sempre no computador da sala, a D. Maria nunca me teria fotocopiado as fichas em cima da hora.
Isto de ser um número não é ser professor porque se assim fosse a M. e o S. nunca me teriam escrito aquelas bonitas palavras, no final de um certo ano letivo, que me fizeram chorar (em privado) de emoção, nem teria escutado "obrigado por não desistir de nós", nem me teriam deixado fatias de bolo e flores em cima da secretária. Os números não comem bolos, nem cheiram flores, não sabem o que perdem!

                                                                                                                                                                   Foto: Um dia de sonho


quarta-feira, 5 de julho de 2017

Coisas que a minha memória de peixe não quer esquecer (parte I)

 Pedro;
Gostas de te sentar do sofá com o pé na boca, gostas de bananas, papaia, manga e bolacha maria. Não gostas de muito de leite, nem de cenoura cozida. Gostas de "correr" atrás do Sebastião e de lhe puxar os bigodes. Adoras carregar em botões: do comando, dos brinquedos, dos eletrodomésticos, do elevador... ainda não te sentes seguro para caminhar sozinho, mas não pecisas de ter pressa. Gostas de colo e mais colo e mais colo... Não gostas de ouvir "não". Gostas de dormir agarrado à tua mantinha e de esfregá-la na cara até adormecer. Gostas de roer os lápis do teu irmão e de lhe puxar o cabelo. 
Gostas de passear, de observar o que te rodeia, gostas de explorar, de tirar os livros da estante da mamã e a roupa das gavetas. Não gostas que te mudem a roupa, nem que te prendam na cadeira da papa ou do carro.
A primeira canção de embalar que ouviste foi "Vitinho - quando a lua acordar...", porque na realidade não sei outra. A primeira história que te li foi:" Miminhos, miminhos", mas não me deixaste chegar ao final. Já te nasceram quase todos os dentinhos, gostas do sabor da pasta de dentes. Adoras água e tomar banho e brincar na banheira com os patinhos amarelos, mas não gostas de sentir a água a cair na cabeça. Bates palmas quando estás zangado. 
Gostas de pessoas, de festas, de música, de sorrir, de dançar e de falar "pedrês". 
E eu gosto de gostar de ti.

(14 meses)